domingo, 31 de outubro de 2010

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Tropa de Elite 2


É com flashes de cenas do primeiro filme misturados aos créditos que começa Tropa de Elite 2 (Brasil, 2010, 1 h 56 min).  A lembrança de sucesso da primeira franquia serve para aquecer o público sedento para ver agora muito do que viu em 2007, quando Padilha surgiu para o mundo com sua distribuição excêntrica "acidental" de Tropa de Elite, através de uma suposta cópia vazada do filme ainda não concluído.
Tropa de Elite parou o país em 2007 e jargões sobreviveram durante muito tempo na boca de pessoas de todas as idades. "Pede pra sair" e outras expressões do Capitão Nascimento (Wagner Moura) estão também no segundo filme, marcando Wagner Moura para sempre com o personagem caricato.
Não se mexe (muito) em time que está ganhando. É assim que fazem aqui - repetem os personagens, jargões, violência e estrutura. Tropa de Elite 2 também começa com uma cena do final interrompida em momento dramático, quando a plateia está com o coração na boca. Dessa cena somos cortados para alguns anos antes. Então começa a parte chata. O primeiro sinal é o "blá blá O sistema blá" da narração em off do capitão nascimento. O filme vai e volta, fade in, fade out, fusão e o Capitão Nascimento não cala a boca. É a voz de Deus. Como um documentário precário que só acontece na edição e, para compensar a falta de criatividade, amarram tudo com uma narração em off.
O Capitão Nascimento narra o que está em cena e o que não está. Comenta, debate, anuncia e expõe suas ideias. Discute o filme. Quase um programa de televisão, onde normalmente não se deixa o espaço para que o espectador complete a obra com sua interpretação. Tropa já veio mastigado.
Mas Tropa precisa desse narrador pra costurar a narrativa? Não. Há um grande diretor e um grande roteirista por trás. Eles sabem bem como criar uma narrativa sólida. Bráulio Montovani fez isso muito bem nos roteiros de Cidade de Deus e Linha de Passe e igualmente para Padilha em Ônibus 174. O truque é um artifício para deixar o filme mais evento do que é. Tropa de Elite é feito para esse momento, para a bilheteria. Não sobreviverá ao tempo. O filme deixa o público de queixo caído pelo impacto das cenas (violentas). Esse impacto só vale para a primeira vez que é visto, enquanto é surpresa. Em um segundo momento, quando já sabemos que não seremos surpreendidos, qualquer um pode enxergar o filme por detrás dessa fachada de sangue.
Muitas cenas e sequências são anexos que não acrescentam na história. Um roteiro ainda em brainstorm. "Padilha! Já pensou colocarmos uma cena com defuntos queimados?", fala Montovani - "Ótimo! Que tal uma jornalista curiosa querendo a capa do jornal e seu fotógrafo medroso?" - responde Padilha muito contente. Assim nasce uma sequência violenta.
A narração em off também é recurso para um outro grande propósito do filme, levantar bandeirinha. A narração está justamente ocupando os espaços que deveriam ser o silêncio, a reflexão. Acusar a hipocrisia social e deficiências políticas do país em vários momentos é nobre, já em outros (vários) nem tanto. Levantar bandeira não é saudável tratando-se de arte. É perigoso e o poder de subversão é grande. No filme, ideias generalizante e superficiais como a Academia ser composta de almofadinhas e bandido bom é bandido morto são algumas das defendidas. O pragmatismo extremo é pregado. Mas lidar com humanos não é algo tão pragmático como chegar a resultados matemáticos, como gostaria o Capitão Nascimento. O papel do BOPE no final das contas parece sempre estar cortando unhas sociais. E unhas crescem novamente.
O visual do filme é mais interessante. A fotografia demonstra um desleixo inicial na fase de gravação. Algo proposital. Luz estouranda e cores erradas. Esses "defeitos" no momento de gravação receberam tratamento em pós produção, cujo resultado é um rebuscado bem finalizado. A estética do documentário (fotografia desleixada) somada à finalização de longa de ficção. Nos momentos em que o Capitão Nascimento se encontra com a ex-mulher, supercloses com uma câmera nervosa são usados e o background é completamente desfocado. O que também é interessante.
Outro mérito é a caracterização de personagens. Muitos aí são memoráveis. Além do Capitão Nascimento, vindo do primeiro filme, agora também temos Deputado Fortunato (André Mattos), em uma clara homenagem ao "jornalista" Datena. Mitificar personagens assim é recurso dos filmes de máfia de Hollywood. Esse glamour aos personagens não é dado à violência - outro ponto! Na vida real, o bandido não segura a vítima 10 minutos para a polícia chegar, vencer e sobrar a mensagem "o crime não compensa", como fazem os americanos. Se a intenção é matar, que seja de uma vez.
Tropa de Elite é um filme evento, cujo potencial de muitos profissionais talentosos envolvidos foi colocado em segundo plano para uma certeza de sucesso. O comercial não é sinônimo de ruim, mas há muito mais áreas comerciais cuja garantia de sucesso compromete a qualidade do filme. Foi aí que preferiram explorar. Por fim, a pedância do discurso construído no novo longa de Padilha faz concluir que se Michael Moore tivesse feito um longa de ficção, provavelmente teria sido Tropa de Elite 2.

sábado, 16 de outubro de 2010

De olhos bem fechados

Antes de morrer, Stanley Kubrick (Doutor Fantástico) é nosso guia por uma viagem pelas ruas de Nova York. O meio de transporte é seu olhar peculiar sobre a cidade e seus personagens excêntricos. É com um curioso jogo de luzes e sombras (mais sombras que luzes) que Kubrick sai do nosso mundo e juntar-se às estrelas (morre). Esse jogo é De olhos bem fechados (Eyes wide shut, EUA, 1999 - 2 h 39 min).
Bill (Tom Cruise), um médico, e Alice (Nicole Kidman), escultora e curadora, formam um casal de classe média alta bem instruído e de estabilidade aparentemente invejável. Ao irem a uma festa de um amigo, Victor (Sydney Pollack), se envolvem em situações que desperta neles conflitos que já existiam, mas precisavam de um motivo para entrar no campo da percepção.
Bill é acompanhado durante a festa por duas modelos que fazem questão de deixar claro o interesse delas no médico. O diálogo quente, com flertes nada inocentes, é interrompido quando Bill tem que atender alguém na mansão que está passando mal. Sem ser deixada para trás, Alice dança durante toda a noite com um húngaro, cuja intenção, que não esconde em momento algum, é levar Alice para a cama. Aparentemente se fazendo de difícil, Alice recusa as insistências alegando ser casada.
Alice, Bill e seus acompanhantes na festa já estão alterados pelo álcool. A mundança química aparentemente torna os personagens muito mais afiados na dialética. O raciocínio deles é um fluxo incessante. Assunto algum merece o respeito de ser mantido. A cada possível insinuação ou declaração ambígua, um personagem é retrucado e desafiado. Os diálogos, portanto, como diz a dialética, caminham para o infinito.
As cenas duram o bastante para os personagens se cansarem. Refletindo esse cansaço para o público, Kubrick usa poucos planos, de preferência bem longos. Mais que cansado, o público fica ansioso e desconfortável. A sequência da festa dura quase ela toda. Sabemos quando o tempo é elipsado quando é ressaltado com fusão de planos. A fusão, aparentemente abusiva e excessivamente didática, é mais um recurso para gerar desconforto no público.
A festa acaba e Bill e Alice não consumam seus flertes. Em outro momento, depois de alguns baseados, começam a discutir a relação a partir das antíteses atiradas por Alice às teses de Bill, que jura ser fiel à esposa por amá-la. A síntese parece inalcançável. Alice se ofende por Bill falar que homens se aproximariam dela primeiramente por ser muito bonita. Com o aquecimento da discussão, Alice confessa que teria abandonado Bill e a filha por uma paixão repentina que tivera por um marinheiro. A imagem de Alice com o tal marinheiro o consumirá pelos próximos dois dias, com flashes repentinos.
Bill começa um tour pelas ruas de Nova York a partir de uma visita à casa de um paciente que morreu. A filha do paciente revela estar apaixonada por ele. Bill vaga pela cidade e não consegue transar com uma prostituta ao ter que se apressar a voltar para casa, pois Alice telefona para ele. Encontra um amigo pianista que conta para ele sobre um baile de máscaras misterioso onde tem tocado. Bill anota o endereço e sai atrás da fantasia no início da madrugada, quando as lojas estão fechadas. A partir daí o nível dos fatores é cada vez mais bizarro e surreal, revelando o que há de mais estranho na madrugada de uma cidade ou da perturbada mente de Bill.
As cenas longas, com foco nas atuações (excelentes) e mise en scène, aparentemente um teatro filmado, mostram-se a escolha ideal para tornar a passagem do tempo algo doloroso para a plateia, refletindo o que os personagens sentem. A angústia de um casal que cria para si diversas pseudo-crise que se resolveria com o fim da verdadeira crise, a sexual.
Ambientado em período natalido, vermelho e amarelo predominam. Em contraponto, há sempre uma janela, ou outro emissor de luz, irradiando um azul claro vibrante. O curioso é que essa luz não é nada natural, já que a maioria das cenas é noturna e em ambiente interno. O contraste berrante entre o amarelo alaranjado e o azul, somado ao ambiente interno normalmente lotado de elementos de cena e a composição dos planos já citada, ressalta a ansiedade dos personagens, transferida para o público, além de tornar a atmosfera soturna.
A combinação dos diversos elementos, que beat a beat tiram a história do trilho e despistam o raciocínio de espectador para o que aparentemente ele espera da resolução, tornam a obra um sopro de vitalidade para a filmografia de Kubrick que se encerra aí. O filme passeia por gêneros e estruturas. Quando pensamos que temos que focar nosso raciocínio para desvendar os mistérios de rituais sexuais estranhos praticados por milionários numa mansão, somos trazidos novamente para o drama familiar protagonizado por Kidman e Cruise. E delas somos retirados para pensar se tudo não teria sido loucura, sonho. Os limites da realidade são questionados. A síntese que temos é... sem mais spoiler.

sábado, 2 de outubro de 2010

A fraternidade é vermelha



As premissas lançadas em A liberdade é azul e em A igualdade é branca resultaram no A fraternidade é vermelha (Trois Couleurs: Rouge, França, 1994 - 1 h 39 min), filme que encerra a brilhante Trilogia das Cores e a filmografia impecável de Krzysztof Kieslowski, que morreria 2 anos mais tarde do lançamento do mesmo, não realizando a trilogia Heaven-Hell-Purgatory, projeto que viria depois das Cores.
Valentine (Irène Jacob) é modelo. Seu namorado está viajando e mantém contato por telefone. Seus constantes ataques de ciúme a machucam, principalmente pelo fato de ela amá-lo bastante. Distraída com o rádio fora de sintonia, Valentine acaba atropelando uma cadela à noite. Segue o endereço registrado na coleira da cadela e chega à casa de um juiz aposentado (Jean-Louis Trintignan). Misterioso e distante, o juiz pede que Valentine vá embora e que fique com a cadela.
Trazida à casa do juiz em outro momento também pela cadela, que foge até lá, Valentine passa a construir uma relação um tanto original com o juiz. Ambos se escultam e desenvolvem longos e calorosos diálogos durante a película. Os dois, inicialmente solitários, se confortam. Uma relação que aparentemente não aconteceria se Valentine, tão fraterna, não estivesse envolvida.
Inicialmente Valentine havia desprezado o juiz, por descobrir que ele usa um rádio para ouvir conversas por telefone dos vizinhos. Provalvelmente por enxergar no juiz um grande potencial para abandonar aquela atividade que ela julgava como abominável, insiste em tê-lo na sua presença.
Perto do apartamento de Valentine mora Auguste (Jean-Pierre Lorit), que se prepara para uma prova para o cargo de juiz. Além dos livros, Auguste gasta seu tempo com a namorada, que mora ao lado da casa do juiz.
Pequenos atos de Valentine fazem toda a diferença na vida de Auguste. Pouco antes de atropelar a cadela, Valentine assusta Auguste que atravessava a rua destraído, carregando vários livros. Um dos livros cai aberto, Auguste lê a página e aquilo cai na prova para o concurso de juiz. Auguste se torna Juiz.
Quando Valentine acerta numa máquina caça-níquel, alguém passa e profetiza que aquilo não era um bom sinal. Na mesma noite, Auguste flagra a namorada na cama com outro. Temos um plano mostrando a máquina pouco antes de Auguste ter a grande decepção. É a indicação do que seria aquilo que não significava algo bom.
A frustração amorosa de Auguste é igual à que o juiz aposentado, amigo de Valentine, sofreu quando tinha a mesma idade. Auguste vem trilhando vários dos traumas que o juiz aposentado sofreu. Essa construção faz que enxerguemos o futuro de Auguste tão deprimente quando a do outro Juiz. Mas há bastante otimismo para Auguste que pode ter seu destino solitário se encontrar alguém como Valentine (que eventualmente cruza com ele várias vezes, como se o destino conspirasse), alguém que só apareceu muito tarde na vida do outro, nas próprias palavras do personagem de Jean-Louis.
Perco as possibilidades de substantivos e repito no meu texto várias vezes "juiz aposentado" justamente por falta de alternativas. Em momento algum da obra o personagem tem seu nome mencionado. Já não bastasse ser excêntrico (ouvir conversas alheias por um rádio) e tão misterioso. Mas a mitifação do personagem à medida que a trama evolui o coloca em outro nível, o santifica. Ele enxerga tudo de fora e ouvir conversas pelo rádio não soa mais bisbilhotice, mas o coloca no referencial de cima, de Deus.
Os méritos técnicos também não devem ser ignorados. A fotografia, agora de Piotr Sobocinski, é quente pelos tons vermelhos ressaltados. Os planos de Valentine sobre fundo vermelho se tornaram ícones do cinema de Kieslowski. A passagem do tempo, das longas tardes de diálogos entre Valentine e o juiz aposentado, são perfeitamente representadas pela mudança de iluminação suave e gradual.
 Na terceira parte da trilogia o ritmo se retarda, os planos, cenas e sequências são mais longos. O período de tempo abordado é menor. Longos trechos do filme representam o tempo real, ou uma tarde inteira em que Valentine conversa com o juiz. É o rítmo de um final grandioso.
Os pontos abertos nas três partes da trilogia foram vapor d'água que carregaram nuvens para uma tempestade assustadora, literalmente. Uma viagem marítima para a Inglaterra põe a bordo Valentine e os protagonistas dos outros dois filmes. O único que continua em terra filme é o juiz aposentado que, da França, não se espanta com a notícia de serem eles os primeiros resgatados do naufrágio do navio que os levava para a Inglaterra. As brisas dos três filmes, todas as ocasionalidades, geraram a tempestade de Vermelho, que encerra a Trilogia das Cores, a carreira (como diretor) de Krzysztof Kieslowski e põe no lugar significados deixados pela Revolução Francesa, desvirtuados pela repetição descontextualizada em boa parte dos livros didáditos.
 
Copyright © Maurício Chades