domingo, 15 de agosto de 2010

A Origem



Christopher Nolan (O grande truque) traz uma filmografia com blockbusters de traço peculiar. Sua obra representa a possibilidade da constante reinvenção do gênero, assim como sua sobrevivência. Como Spielberg, Lucas, Scorcese já fizeram, Nolan tem seu momento de afirmar para o mundo que o blockbuster é o gênero mais norte-americano e não é necessariamente menos inteligente que um drama europeu.
Don Cobb (Leonardo DiCaprio) é um ladrão de segredos. Penetra a mente de suas vítimas via sonhos e consegue informações que comprometem ações empresariais e muito capital. É foragido pela acusação de ter matado sua esposa Mal (Marion Cotillard). Está impedido de voltar para os Estados Unidos. Tem que manter a distância dos filhos, cuja memória que guarda é de estarem brincando num jardim, de costas para ele. A ação de tal memória se completaria quando pudesse ver o rosto do filhos. Sonha em terminar esse comercial de margarina com filhos loirinhos e perfeitos.
Voltar para os filhos se torna algo mais próximo de Cobb quando recebe a ousada proposta de Saito (Ken Watanabe). Sua missão quase impossível é invadir a mente de Richard Fischer (Cillian Murphy), herdeiro de um império econômico, e implantar uma ideia que o faça desmembrar tal império. Para isso, conta com uma equipe competente, mas luta contra a memória de Mal, uma sombra da verdadeira Mal, que é a vilã.
O filme aposta numa estética bonita e publicitária para os sonhos. Mas a densidade disso não se resume à beleza de efeitos e cenários. Em A Cela, por exemplo, os figurinos e direção de arte exuberantes soam meramente como exibicionismo, não tendo função direta para o resultado da trama ou dimensão dos sonhos. A Origem (Inception, EUA, 2020 - 2 h 28 min) investe num visual rigoroso, mas mostra que os sonhos são como os que temos, com problemas de continuidade da realidade, etc.
A estudante de arquitetura Ariadne (Ellen Page) cria os cenários onde acontecerão os sonhos. Seu processo criativo é rápido. As coisas vem quase sempre prontas na sua cabeça. Vemos na tela uma representação do que é a inspiração. Ela mistura referências e cria coisas inéditas e é chamada a atenção por Cobb para nunca repetir completamente coisas que já foram feitas.
Nos momentos de "invasão onírica" mais significativas do filme, a sequência inicial e o ato final, a realidade se devenvolve em ambientes de viagem. No início do filme acontece num trem e no final em um avião. A realidade é um ambiente de transição, instável como (ou mais) que os sonhos. É dito por um personagem durante o filme "eles não vem aqui para sonhar, mas para acordar. Pois, se passam a maior parte do tempo nos sonhos, essa já é uma realidade mais próxima do que a própria realidade".
Nolan assina também o roteiro. Estabelece tramas se cruzando quase sempre. Intensifica o clima de ação. Já é traço claro nele lançar frases simples no início da trama para mais tarde enaltecê-las repetindo em cena chave. Assim como mitificar objetos aparentemente banais (como o pião que gira sem nunca cair que Cobb usa para inserir uma ideia na mente de Mal). Repetir as frases como faz, pode ser uma tentativa de torná-la memorável ou dizer que os detalhes no filme são supostamente mais importantes do que aparentavam. Muitas vezes soa bobo. A edição ressalta a complexidade da colcha de retalhos que estão costurando. Planos e cenas são curtos e as sequências estão sempre cruzadas. As sequências se amarram claramente pela trilha sonora (por ora barulhenta) de Hans Zimmer. A maneira como utiliza tal recurso remete a Ridley Scott. Quando o filme se volta para os dramas familiares (a de Cobb e sua esposa e dos Fischer), há respiro maior entre as cenas. A história se explica e o espectador se sente inteligente. Primeiramente temos a riqueza da polissemia, mais tarde temos uma série de flashbacks didáticos (esse é o segredo do sucesso comercial de Nolan: fazer o público se sentir inteligente e, mais tarde, acabar contando tudo para eles). O drama dos Fischer é pseudo-profundo. Não passa de algo aparente e uma tentativa de inserir um personagem cujo passado de criança melancólica e carente o afugenta.

Por fim, tiro minha roupagem cética e crítica para uma impressão que tive muito por acaso. Se outros a tiveram, também foi bem por acaso. Quando é o momento de sair do sonho, combinam que o sinal é tocar Non Je Ne Regrette Rien, da Piaf. A letra fala, resumidamente, de não se arrepender, de esquecer e começar do zero (Ha!). Nunca contei, mas posso apostar que essa é a música mais usada em filmes. E olha que nem deve ser de domínio público. No primeiro momento em que começa a tocar e já havia entrado em cena Marion Cotillard, inevitavelmente acabei associando as coisas. Marion se consagra como atriz internacional ao encarnar Piaf em Piaf - um hino ao amor. Sua atuação é tão perfeita que estará eternamente marcada pela personagem. Quando toca Piaf no filme, para mim, quem canta é Mal. Isso é um problema de interpretação chamado extrapolação. Mas Barthes está do meu lado ao dar à interpretação o infinito de possibilidades. Abaixo, a cena de Piaf em que é cantada Non Je Ne Regrette Rien.


quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Por um cinema gráfico

All City Media é um estúdio criado em 2000 pelos designers David Frost e Peter Hanson. Desde então, criam as mais interessantes campanhas gráficas para longas de todos os países. O prestígio é tamanho que costuma receber jobs apenas de filmes cujos interesses artísticos não se submetem (ao menos não tanto) aos comerciais.


domingo, 8 de agosto de 2010

Cashback




Odeio stand-up! É um tipo de comédia em que um ator se veste de pessoa normal e finge ter um senso crítico aguçado e lança diversas "verdades" de forma pedante para a plateia. Suas ideias são superficiais e são atiradas no receptor de forma incessante. Não há espaço para a contestação ou reflexão. Stand-up se aproxima do pseudo-cult a partir do momento em que faz análises superficiais acreditando ter pleno domínio do assunto. Cashback (Idem, Inglaterra, 2006 - 1 h 42 min) é apontado por muitos como despretensioso, mas há sim um caráter stand-up nele, algo (bastante) pseudo-cult. Ele quis ser um filme inteligente, portanto não é despretensioso.
Ben (Sean Biggerstaff) é estudante de artes que entra em crise emocional após o término do namoro. Arruma um emprego num supermercado. Seus colegas de trabalho são os tipos mais esquisitos, porém divertidos. Ele é artista, portanto tem um olhar particular sobre as coisas. Tem o poder de controlar o tempo. Retarda-o ou mesmo o congela. Faz isso para observar melhor. Seus desenhos são reflexo disso - retratos fieis da realidade, com todos os detalhes.
A trilha sonora é óbvia e normal. Reproduz exatamente aquilo que estamos vendo. Tem seus momentos criativos quando insere alguma música erudita muito famosa em cenas parecidas, como fazia Kubrick. As cenas são quando suas duas namoradas estão brigando com ele e, para fugir, diminui a velocidade do tempo. As boas ideias do filme, centradas no olhar que um artista tem do mundo, são desperdiçadas com a narração em off do personagem. As imagens ficam rígidas e quase morrem com o incessante texto falado de forma apressada (stand-up) pelo Ben. Ele descreve até a ação da cena, quase lendo o roteiro.
É mérito na edição do filme a transicão do tempo real para o tempo de um flash back. Ela é feita dentro do mesmo quadro. É sofisticado. Mas os flash back são exagerados. Temos vários minutos do filme destinado à biografia do protagonista. Uma série de informações que não tem utilidade no futuro da narrativa.
Alguns personagens são estereótipos. Por ser uma comédia romântica, há o risco de cair em vários jargões. Ben é sensível, enxerga as mulheres de forma peculiar. Para se contrapor, trazem o personagem mais antigo da comédia romântica: o amigo sem noção, tarado, bobão e conselheiro amoroso desastrado. Muitos estereótipo estão aí para dar o tom da comédia, mas acabam, várias vezes, caindo no pastelão. Mas há momentos muito engraçados também. A cena do jogo de futebol é impagável.
Cashback é aquele filme que você pega na prateleira de filmes bons da locadora. Chega em casa e: surpresa.

Os fragmentos de Tracey

Ao se assumir experimental ou nitidamente subverter convenções, temos que esquecer alguns princípios para analisar uma obra. Muita coisa que era errada por ser absurdamente simples passa a ser o respiro do complexo e tem seu uso justificado. Os fragmentos de Tracey (The Tracey fragments, Canadá, 2007 - 1 h 20 min) é filme pop experimental. Tenta trazer contribuições para a linguagem cinematográfica ao mesmo tempo que tem público alvo que aborde os jovens (aqueles que normalmente não tem paciência com o não comercial).
Tracey (Ellen Page) é uma adolescente de 15 anos cuja estrutura mental está sucumbindo com a pressão que recebe de todos os lados. Um pai impaciente e uma mãe louca. É a piada dos colegas da escola. Seu irmão mais novo tem problemas mentais e ela é quem mais chega perto de tratá-lo adequadamente. Sofre também os maus da idade. Acaba se apaixonando e não sabe reagir a isso.
Para demonstrar graficamente a complexidade e dimensão dos problemas de Tracey, a tela é dividida durante quase todo o filme em várias outras. São os fragmentos. Normalmente os vários planos justapostos são ações que acontecem ao mesmo tempo. Várias câmeras filmando a mesma ação. Referência ao cubismo nas artes plásticas. O objetivo é que apreendamos o tempo todo de uma vez. Numa decupagem clássica, o diretor mostraria primeiro um plano geral, depois um detalhe da mão puxando o gatilho e, provavelmente, depois outro plano geral para mostrar o momento do disparo. Nisso ele estica o tempo, duplicando-o, triplicando-o. Em Fragmentos temos o tempo real sem lançar mão de vê-lo de perspectivas diferentes. Na decupagem tradicional sabemos o que sentimos e porque. Sabemos quando é o momento de tensão e porque estamos tensos. No caso de Fragmentos, temos todas as emoções ao mesmo tempo, então não temos nenhuma. Mas a impressão de confusão por parte da protagonista sempre sobrevive.
Os framentos também representam a resistência de Tracey. Ela é tímida e certamente tem vários traumas. Vive no seu mundo psicológico e prefere não se entregar à realidade, pois tem medo. Os fragmentos na tela são sua defesa. Seu psicólogo andrógino é quem percebe isso. Em algumas cenas de consultas com ele a tela fica com um único plano. É Tracey desarmada e confiando em alguém.
A divisão da tela é recurso para diversos outros fins no filme. O fluxo de memória é um. Outro, o mais óbvio, é história em quadrinhos. Ações que se desenvolvem paralelamente também são mostradas em quadros diferentes.
O ritmo incessante, fragmentado e nem um pouco clássico, do filme, marcado pela edição, justifica a voz off de Tracey contando bastante de sua vida e de seus sentimentos. Muitas pistas para entender algumas coisas são ditas pela voz onipresente de Tracey, assim como também é uma chave para que o filme seja mais comercial. Afinal ninguém faz filmes para não ser assistido.
Ellen Page tem aí mais uma grande atuação. É perigoso que ela fique estigmatizada por seus personagens. Além de serem sempre muito intensos e virarem ícones do que representam, são todos muito parecidos. Ela é uma musa indie e o mercado vê para ela certos tipos de personagem, algo normal. Mas é perigoso.
Fragmentos de Tracey é denso e profundo. Subverte valores do cinema, hibridiza-o com o video-arte e o vídeo de modo geral. É um catálogo de soluções de representação estética de sentimentos dos personagens. Trata dos sonhos utópicos de adolescentes e suas máscaras sociais. É extremamente contemporâneo. Na geração twitter se vê o reflexo.
 
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