Ao se assumir experimental ou nitidamente subverter convenções, temos que esquecer alguns princípios para analisar uma obra. Muita coisa que era errada por ser absurdamente simples passa a ser o respiro do complexo e tem seu uso justificado. Os fragmentos de Tracey (The Tracey fragments, Canadá, 2007 - 1 h 20 min) é filme pop experimental. Tenta trazer contribuições para a linguagem cinematográfica ao mesmo tempo que tem público alvo que aborde os jovens (aqueles que normalmente não tem paciência com o não comercial).
Tracey (Ellen Page) é uma adolescente de 15 anos cuja estrutura mental está sucumbindo com a pressão que recebe de todos os lados. Um pai impaciente e uma mãe louca. É a piada dos colegas da escola. Seu irmão mais novo tem problemas mentais e ela é quem mais chega perto de tratá-lo adequadamente. Sofre também os maus da idade. Acaba se apaixonando e não sabe reagir a isso.
Para demonstrar graficamente a complexidade e dimensão dos problemas de Tracey, a tela é dividida durante quase todo o filme em várias outras. São os fragmentos. Normalmente os vários planos justapostos são ações que acontecem ao mesmo tempo. Várias câmeras filmando a mesma ação. Referência ao cubismo nas artes plásticas. O objetivo é que apreendamos o tempo todo de uma vez. Numa decupagem clássica, o diretor mostraria primeiro um plano geral, depois um detalhe da mão puxando o gatilho e, provavelmente, depois outro plano geral para mostrar o momento do disparo. Nisso ele estica o tempo, duplicando-o, triplicando-o. Em Fragmentos temos o tempo real sem lançar mão de vê-lo de perspectivas diferentes. Na decupagem tradicional sabemos o que sentimos e porque. Sabemos quando é o momento de tensão e porque estamos tensos. No caso de Fragmentos, temos todas as emoções ao mesmo tempo, então não temos nenhuma. Mas a impressão de confusão por parte da protagonista sempre sobrevive.
Os framentos também representam a resistência de Tracey. Ela é tímida e certamente tem vários traumas. Vive no seu mundo psicológico e prefere não se entregar à realidade, pois tem medo. Os fragmentos na tela são sua defesa. Seu psicólogo andrógino é quem percebe isso. Em algumas cenas de consultas com ele a tela fica com um único plano. É Tracey desarmada e confiando em alguém.
A divisão da tela é recurso para diversos outros fins no filme. O fluxo de memória é um. Outro, o mais óbvio, é história em quadrinhos. Ações que se desenvolvem paralelamente também são mostradas em quadros diferentes.
O ritmo incessante, fragmentado e nem um pouco clássico, do filme, marcado pela edição, justifica a voz off de Tracey contando bastante de sua vida e de seus sentimentos. Muitas pistas para entender algumas coisas são ditas pela voz onipresente de Tracey, assim como também é uma chave para que o filme seja mais comercial. Afinal ninguém faz filmes para não ser assistido.
Ellen Page tem aí mais uma grande atuação. É perigoso que ela fique estigmatizada por seus personagens. Além de serem sempre muito intensos e virarem ícones do que representam, são todos muito parecidos. Ela é uma musa indie e o mercado vê para ela certos tipos de personagem, algo normal. Mas é perigoso.
Fragmentos de Tracey é denso e profundo. Subverte valores do cinema, hibridiza-o com o video-arte e o vídeo de modo geral. É um catálogo de soluções de representação estética de sentimentos dos personagens. Trata dos sonhos utópicos de adolescentes e suas máscaras sociais. É extremamente contemporâneo. Na geração twitter se vê o reflexo.
domingo, 8 de agosto de 2010
Os fragmentos de Tracey
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Postado por
Maurício Chades
às
09:32
Marcadores:
Cinema
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