domingo, 8 de agosto de 2010

Os fragmentos de Tracey

Ao se assumir experimental ou nitidamente subverter convenções, temos que esquecer alguns princípios para analisar uma obra. Muita coisa que era errada por ser absurdamente simples passa a ser o respiro do complexo e tem seu uso justificado. Os fragmentos de Tracey (The Tracey fragments, Canadá, 2007 - 1 h 20 min) é filme pop experimental. Tenta trazer contribuições para a linguagem cinematográfica ao mesmo tempo que tem público alvo que aborde os jovens (aqueles que normalmente não tem paciência com o não comercial).
Tracey (Ellen Page) é uma adolescente de 15 anos cuja estrutura mental está sucumbindo com a pressão que recebe de todos os lados. Um pai impaciente e uma mãe louca. É a piada dos colegas da escola. Seu irmão mais novo tem problemas mentais e ela é quem mais chega perto de tratá-lo adequadamente. Sofre também os maus da idade. Acaba se apaixonando e não sabe reagir a isso.
Para demonstrar graficamente a complexidade e dimensão dos problemas de Tracey, a tela é dividida durante quase todo o filme em várias outras. São os fragmentos. Normalmente os vários planos justapostos são ações que acontecem ao mesmo tempo. Várias câmeras filmando a mesma ação. Referência ao cubismo nas artes plásticas. O objetivo é que apreendamos o tempo todo de uma vez. Numa decupagem clássica, o diretor mostraria primeiro um plano geral, depois um detalhe da mão puxando o gatilho e, provavelmente, depois outro plano geral para mostrar o momento do disparo. Nisso ele estica o tempo, duplicando-o, triplicando-o. Em Fragmentos temos o tempo real sem lançar mão de vê-lo de perspectivas diferentes. Na decupagem tradicional sabemos o que sentimos e porque. Sabemos quando é o momento de tensão e porque estamos tensos. No caso de Fragmentos, temos todas as emoções ao mesmo tempo, então não temos nenhuma. Mas a impressão de confusão por parte da protagonista sempre sobrevive.
Os framentos também representam a resistência de Tracey. Ela é tímida e certamente tem vários traumas. Vive no seu mundo psicológico e prefere não se entregar à realidade, pois tem medo. Os fragmentos na tela são sua defesa. Seu psicólogo andrógino é quem percebe isso. Em algumas cenas de consultas com ele a tela fica com um único plano. É Tracey desarmada e confiando em alguém.
A divisão da tela é recurso para diversos outros fins no filme. O fluxo de memória é um. Outro, o mais óbvio, é história em quadrinhos. Ações que se desenvolvem paralelamente também são mostradas em quadros diferentes.
O ritmo incessante, fragmentado e nem um pouco clássico, do filme, marcado pela edição, justifica a voz off de Tracey contando bastante de sua vida e de seus sentimentos. Muitas pistas para entender algumas coisas são ditas pela voz onipresente de Tracey, assim como também é uma chave para que o filme seja mais comercial. Afinal ninguém faz filmes para não ser assistido.
Ellen Page tem aí mais uma grande atuação. É perigoso que ela fique estigmatizada por seus personagens. Além de serem sempre muito intensos e virarem ícones do que representam, são todos muito parecidos. Ela é uma musa indie e o mercado vê para ela certos tipos de personagem, algo normal. Mas é perigoso.
Fragmentos de Tracey é denso e profundo. Subverte valores do cinema, hibridiza-o com o video-arte e o vídeo de modo geral. É um catálogo de soluções de representação estética de sentimentos dos personagens. Trata dos sonhos utópicos de adolescentes e suas máscaras sociais. É extremamente contemporâneo. Na geração twitter se vê o reflexo.

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