sábado, 16 de outubro de 2010

De olhos bem fechados

Antes de morrer, Stanley Kubrick (Doutor Fantástico) é nosso guia por uma viagem pelas ruas de Nova York. O meio de transporte é seu olhar peculiar sobre a cidade e seus personagens excêntricos. É com um curioso jogo de luzes e sombras (mais sombras que luzes) que Kubrick sai do nosso mundo e juntar-se às estrelas (morre). Esse jogo é De olhos bem fechados (Eyes wide shut, EUA, 1999 - 2 h 39 min).
Bill (Tom Cruise), um médico, e Alice (Nicole Kidman), escultora e curadora, formam um casal de classe média alta bem instruído e de estabilidade aparentemente invejável. Ao irem a uma festa de um amigo, Victor (Sydney Pollack), se envolvem em situações que desperta neles conflitos que já existiam, mas precisavam de um motivo para entrar no campo da percepção.
Bill é acompanhado durante a festa por duas modelos que fazem questão de deixar claro o interesse delas no médico. O diálogo quente, com flertes nada inocentes, é interrompido quando Bill tem que atender alguém na mansão que está passando mal. Sem ser deixada para trás, Alice dança durante toda a noite com um húngaro, cuja intenção, que não esconde em momento algum, é levar Alice para a cama. Aparentemente se fazendo de difícil, Alice recusa as insistências alegando ser casada.
Alice, Bill e seus acompanhantes na festa já estão alterados pelo álcool. A mundança química aparentemente torna os personagens muito mais afiados na dialética. O raciocínio deles é um fluxo incessante. Assunto algum merece o respeito de ser mantido. A cada possível insinuação ou declaração ambígua, um personagem é retrucado e desafiado. Os diálogos, portanto, como diz a dialética, caminham para o infinito.
As cenas duram o bastante para os personagens se cansarem. Refletindo esse cansaço para o público, Kubrick usa poucos planos, de preferência bem longos. Mais que cansado, o público fica ansioso e desconfortável. A sequência da festa dura quase ela toda. Sabemos quando o tempo é elipsado quando é ressaltado com fusão de planos. A fusão, aparentemente abusiva e excessivamente didática, é mais um recurso para gerar desconforto no público.
A festa acaba e Bill e Alice não consumam seus flertes. Em outro momento, depois de alguns baseados, começam a discutir a relação a partir das antíteses atiradas por Alice às teses de Bill, que jura ser fiel à esposa por amá-la. A síntese parece inalcançável. Alice se ofende por Bill falar que homens se aproximariam dela primeiramente por ser muito bonita. Com o aquecimento da discussão, Alice confessa que teria abandonado Bill e a filha por uma paixão repentina que tivera por um marinheiro. A imagem de Alice com o tal marinheiro o consumirá pelos próximos dois dias, com flashes repentinos.
Bill começa um tour pelas ruas de Nova York a partir de uma visita à casa de um paciente que morreu. A filha do paciente revela estar apaixonada por ele. Bill vaga pela cidade e não consegue transar com uma prostituta ao ter que se apressar a voltar para casa, pois Alice telefona para ele. Encontra um amigo pianista que conta para ele sobre um baile de máscaras misterioso onde tem tocado. Bill anota o endereço e sai atrás da fantasia no início da madrugada, quando as lojas estão fechadas. A partir daí o nível dos fatores é cada vez mais bizarro e surreal, revelando o que há de mais estranho na madrugada de uma cidade ou da perturbada mente de Bill.
As cenas longas, com foco nas atuações (excelentes) e mise en scène, aparentemente um teatro filmado, mostram-se a escolha ideal para tornar a passagem do tempo algo doloroso para a plateia, refletindo o que os personagens sentem. A angústia de um casal que cria para si diversas pseudo-crise que se resolveria com o fim da verdadeira crise, a sexual.
Ambientado em período natalido, vermelho e amarelo predominam. Em contraponto, há sempre uma janela, ou outro emissor de luz, irradiando um azul claro vibrante. O curioso é que essa luz não é nada natural, já que a maioria das cenas é noturna e em ambiente interno. O contraste berrante entre o amarelo alaranjado e o azul, somado ao ambiente interno normalmente lotado de elementos de cena e a composição dos planos já citada, ressalta a ansiedade dos personagens, transferida para o público, além de tornar a atmosfera soturna.
A combinação dos diversos elementos, que beat a beat tiram a história do trilho e despistam o raciocínio de espectador para o que aparentemente ele espera da resolução, tornam a obra um sopro de vitalidade para a filmografia de Kubrick que se encerra aí. O filme passeia por gêneros e estruturas. Quando pensamos que temos que focar nosso raciocínio para desvendar os mistérios de rituais sexuais estranhos praticados por milionários numa mansão, somos trazidos novamente para o drama familiar protagonizado por Kidman e Cruise. E delas somos retirados para pensar se tudo não teria sido loucura, sonho. Os limites da realidade são questionados. A síntese que temos é... sem mais spoiler.

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