sábado, 2 de outubro de 2010

A fraternidade é vermelha



As premissas lançadas em A liberdade é azul e em A igualdade é branca resultaram no A fraternidade é vermelha (Trois Couleurs: Rouge, França, 1994 - 1 h 39 min), filme que encerra a brilhante Trilogia das Cores e a filmografia impecável de Krzysztof Kieslowski, que morreria 2 anos mais tarde do lançamento do mesmo, não realizando a trilogia Heaven-Hell-Purgatory, projeto que viria depois das Cores.
Valentine (Irène Jacob) é modelo. Seu namorado está viajando e mantém contato por telefone. Seus constantes ataques de ciúme a machucam, principalmente pelo fato de ela amá-lo bastante. Distraída com o rádio fora de sintonia, Valentine acaba atropelando uma cadela à noite. Segue o endereço registrado na coleira da cadela e chega à casa de um juiz aposentado (Jean-Louis Trintignan). Misterioso e distante, o juiz pede que Valentine vá embora e que fique com a cadela.
Trazida à casa do juiz em outro momento também pela cadela, que foge até lá, Valentine passa a construir uma relação um tanto original com o juiz. Ambos se escultam e desenvolvem longos e calorosos diálogos durante a película. Os dois, inicialmente solitários, se confortam. Uma relação que aparentemente não aconteceria se Valentine, tão fraterna, não estivesse envolvida.
Inicialmente Valentine havia desprezado o juiz, por descobrir que ele usa um rádio para ouvir conversas por telefone dos vizinhos. Provalvelmente por enxergar no juiz um grande potencial para abandonar aquela atividade que ela julgava como abominável, insiste em tê-lo na sua presença.
Perto do apartamento de Valentine mora Auguste (Jean-Pierre Lorit), que se prepara para uma prova para o cargo de juiz. Além dos livros, Auguste gasta seu tempo com a namorada, que mora ao lado da casa do juiz.
Pequenos atos de Valentine fazem toda a diferença na vida de Auguste. Pouco antes de atropelar a cadela, Valentine assusta Auguste que atravessava a rua destraído, carregando vários livros. Um dos livros cai aberto, Auguste lê a página e aquilo cai na prova para o concurso de juiz. Auguste se torna Juiz.
Quando Valentine acerta numa máquina caça-níquel, alguém passa e profetiza que aquilo não era um bom sinal. Na mesma noite, Auguste flagra a namorada na cama com outro. Temos um plano mostrando a máquina pouco antes de Auguste ter a grande decepção. É a indicação do que seria aquilo que não significava algo bom.
A frustração amorosa de Auguste é igual à que o juiz aposentado, amigo de Valentine, sofreu quando tinha a mesma idade. Auguste vem trilhando vários dos traumas que o juiz aposentado sofreu. Essa construção faz que enxerguemos o futuro de Auguste tão deprimente quando a do outro Juiz. Mas há bastante otimismo para Auguste que pode ter seu destino solitário se encontrar alguém como Valentine (que eventualmente cruza com ele várias vezes, como se o destino conspirasse), alguém que só apareceu muito tarde na vida do outro, nas próprias palavras do personagem de Jean-Louis.
Perco as possibilidades de substantivos e repito no meu texto várias vezes "juiz aposentado" justamente por falta de alternativas. Em momento algum da obra o personagem tem seu nome mencionado. Já não bastasse ser excêntrico (ouvir conversas alheias por um rádio) e tão misterioso. Mas a mitifação do personagem à medida que a trama evolui o coloca em outro nível, o santifica. Ele enxerga tudo de fora e ouvir conversas pelo rádio não soa mais bisbilhotice, mas o coloca no referencial de cima, de Deus.
Os méritos técnicos também não devem ser ignorados. A fotografia, agora de Piotr Sobocinski, é quente pelos tons vermelhos ressaltados. Os planos de Valentine sobre fundo vermelho se tornaram ícones do cinema de Kieslowski. A passagem do tempo, das longas tardes de diálogos entre Valentine e o juiz aposentado, são perfeitamente representadas pela mudança de iluminação suave e gradual.
 Na terceira parte da trilogia o ritmo se retarda, os planos, cenas e sequências são mais longos. O período de tempo abordado é menor. Longos trechos do filme representam o tempo real, ou uma tarde inteira em que Valentine conversa com o juiz. É o rítmo de um final grandioso.
Os pontos abertos nas três partes da trilogia foram vapor d'água que carregaram nuvens para uma tempestade assustadora, literalmente. Uma viagem marítima para a Inglaterra põe a bordo Valentine e os protagonistas dos outros dois filmes. O único que continua em terra filme é o juiz aposentado que, da França, não se espanta com a notícia de serem eles os primeiros resgatados do naufrágio do navio que os levava para a Inglaterra. As brisas dos três filmes, todas as ocasionalidades, geraram a tempestade de Vermelho, que encerra a Trilogia das Cores, a carreira (como diretor) de Krzysztof Kieslowski e põe no lugar significados deixados pela Revolução Francesa, desvirtuados pela repetição descontextualizada em boa parte dos livros didáditos.

4 comentários:

  1. Uma boa revisão! E agora uma pergunta para você: No filme, Três Cores Vermelho, havia um bartender Inglês, chamado Stephen Killian. O que ele significa?

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  2. (Stephen Killian foi um dos sobreviventes do desastre do navio)

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  3. Olá, alexandre

    Era algo q tinha me passado batido.. e continua passando... Talvez ele seja apenas alguém inserido na lista dos 7 sobreviventes para que nao fossem apenas aqueles q conhecemos.. ou ele é o barman q sempre atende Julie em Azul, trazendo-lhe café e sorvete?

    Voce tem uma expicação? o/

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  4. Ele não se parece com o homem. Mas...

    Annette Insdorf comentou: " Quando eu perguntei Kieslowski 'Quem é Stephen Killian?' ele disse: 'Talvez alguém sobre quem o filme deve ser feito.' "

    Vou colocar a questão no meu Fórum para você e deixá-lo saber se eu tenho todas as respostas.

    Bom dia,
    Alexandre FABBRI

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