segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O Rio


Entre novembro e dezembro a mostra "Tsai Ming-Liang: O homem do tempo" passa pelos CCBB São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Me incomodava "o homem do tempo" por achar demasiado genérico para descrever arte, em que o tempo é uma das matérias primas mais recorrentes. Mas acentuar "o tempo" como relevante a ser observado na obra do cineasta de Taiwan é realmente pertinente. As escolhas feitas por Tsai Ming-Liang para contar suas histórias tornam o tempo o responsável pelas ações e as "não ações". Essa dimensão é ressaltada por em seus vinte anos de carreira e nove longa-metragens, de alguma forma, ter o mesmo protagonista e interpretado pelo mesmo ator.
Com obra em diversos aspectos referenciar a Nouvelle Vague francesa de quarenta anos atrás, o curioso uso do protagonista é homenagem a Fraçois Truffault. O francês tem como grande marca ser autobiográfico. Tsai usa Xiao-Kang para dar forma ao que no cinema de Truffault fazia Jean-Piere Léaud, que protagonizou Os Incompreendidos, A Noite Americana, entre outros. Compondo o que se apelidou "segunda Nouvelle Vague de Tawian", Tsai exercita sua autoria e tem a originalidade de sua obra bastante consolidada. O tempo é totalmente dilatado, esticado ao máximo. Para isso, não é a decupagem com planos de curta duração que ressaltem várias perspectivas das ações que Liang atinge o efeito. É justamente pelo contrário: planos  que duram muito mais que precisariam para abordar todas as informações (aparentemente) nele contidas. O tempo é muito maior que a trama, muito maior que as personagens. O tempo engole as personagens.
O Rio (He Liu, Taiwan,1997 - 1 h 55 min) é o sexto longa de Tsai e já é trem em movimento para a história de Lee-Kang-Sheng (Xiao-Kang). Mas esse movimento do trem não impede que a viagem seja vista em diferentes momentos do percurso. Todos os longas de Tsai, apesar de trazerem sempre protagonista e cenários que, a princípio, são os mesmo, tem coesão que os tornam obras independentes, mesmo que início e final sejam abertos (o que acontece por outro motivo). E olhar o trem faz pensar que este está parado. Não é à vapor que ele se movimenta - movimento que também não é direcional. Muita coisa acontece nos vagões e nas engrenagens. O Rio abusa do tempo morto para mostrar o que não é concreto. A atmosfera que se compõe incessantemente. Diversos elementos compõe esse nada de uma câmera quase parada filmando quase nada (aparentemente). A saturação que acontece quase se leva tudo em consideração paralisa a narrativa num limbo. Lee cruza com uma (ao que aparenta) ex-namorada numa escada rolante no primeiro plano do filme. O plano simétrico frontal em que de um lado sobe Lee por uma escada e do outro desce a moça, que percebe o rapaz e vai ao encontro dele é o único momento em a vida aparentemente era certa para as personagens. Nossa sensibilidade absorve tudo que nos cerca involuntariamente, motivo que em diversas ocasiões estamos tristes ou felizes sem saber porque. A atmosfera de O Rio absorveu esse acaso para adoecer a vida das personagens. Enfim, uma interferência que tirou o rio do fluxo normal.
Os problemas maiores na vida de Lee começam com um acidente simples de moto que gerou um torcicolo em seu pescoço. A personagem perde completamente o controle da dor que sente e dos movimentos do pescoço. Não ter tomado medidas a tempo aumentam a proporção de seu problema. Lee não dá sorte na busca de um profissional que possa atendê-lo. Para algo aparentemente simples, tratando-se de medicina, diagnosticam Lee de possesso por maus agouros e outras coisas de tal natureza. Os problemas nunca são resolvidos e a narrativa se toma as proporções de uma polifonia dissonante. Os pontos nunca fechados tornam a atmosfera cada vez mais densa e angustiante.
Os longuíssimos planos de Tsai são ricos de informação com o requintado uso da profundidade de campo e do extra-campo. Filmando normalmente em apartamentos ou na casa da família de Lee, Tsai explora os cômodos distantes, para além das portas abertas. Os personagens se deslocam na frente da câmera parada. Saem de campo, ficam no extra-campo por um bom tempo, sem pressa de voltar e, enfim voltam.
Final e início aberto, retomando, são consequencias também do tempo. Tsai faz  precisos recortes da vida de suas personagens. Mas esse recorte torna mínima a participação da edição. O objetivo não é necessariamente construir algo que ressalte os aspectos mais interessantes - como na narrativa da ação/reação. O tempo real é o grande valor de Tsai. Esse recorte reconhece que uma vida não começa e nem acaba em duas horas. Por isso o não início e o não final. Tsai é "essencialista", como o comer, beber, tomar banho, fazer sexo, etc. que tanto traz para o seu cinema.

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