sábado, 18 de setembro de 2010

A liberdade é azul


Com o bicentenário da Revolução Francesa e a unificação da Europa para a criação da União Europeia, o diretor polonês Krzystof Kieslowski recebe o convite de fazer o que resultou na Trilogia das Cores. Em três filmes são discutidos os valores pelos quais a Revolução lutou, aplicando-os no contexto da década de 1990.
As três cores que dão nome aos filmes da trilogia são as mesmas da bandeira francesa. No Brasil, o título dos filmes ganhou um anexo: cada  um também leva um dos valores que compõem o lema da Revolução. Liberté, egalité e fraternité transformaram Bleu, Blanc, Rouge em A Liberdade é Azul, A igualdade é Branca e A Fraternidade é Vermelha, respectivamente. Isso limita um pouco a ideia que podemos extrair dos filmes. É certo que a liberdade é tema de maior destaque em Azul, o que não quer dizer que não será tratado nos outros filmes.
Nos três filmes há cenas que ressaltam a ideia de pessoas diferentes em lugares diferentes pensando a mesma coisa, ou seja, quebra de fronteiras da solidão - tema de maior destaque do terceiro filme. Há coincidências e acasos. Os acasos são essenciais, são o elemento que muda a vida dos personagens.
A Liberdade é Azul (Trois Couleurs: Blue, França,  1993 - 1 h 37 min) anuncia perfeitamente a qualidade que Kielowski se compromete a manter para os outros dois filmes. Julie (Juliette Binoche em sua melhor atuação) tem sua vida completamente mudada por conta de um defeito mecânico no carro, que resulta num acidente que mata seu marido e sua filha. Ela desiste da vida e tenta suicídio, mas volta atrás. Então faz tudo que pode para esquecer a vida que teve com a família. Destrói todas as lembranças, cartas, fotos, muda-se de casa. Restaram as partituras de uma obra que seu marido, músico de fama internacional, compunha para homenagear a unificação da Europa. Olivier (Benoít Régen), amigo de Julie e de seu falecido marido, se empenha em concluir a obra inacabada. Julie também se envolve com o projeto para composição do restante da obra. Esse envolvimento, bem como de Julie com Olivier, constrói novos motivos para a protagonista voltar a ter amor pela vida.
Julie é misteriosa e seus posicionamentos são sempre passivos e ambíguos. É uma personagem minimalista. Apega-se aos detalhes para se desligar da realidade. Isso faz do close um plano recorrente do filme. Na sequência inicial, que termina com o acidente de carro, a mão que brinca com um plástico azul, embalagem de pirulito, é a de Julie. Ela sempre pede o mesmo no café que frequenta: café e uma bola de sorvete. Nesta cena ela imerge uma parte de um cubo de açúcar no café para observar todo o cubo ser embebido de café em alguns segundos. Um dos poucos objetos que guarda do passado em família é um lustre azul que, com um trabalho primoroso do fotógrafo Slavomir Idziak, imprime luzes azuis no rosto de Julie - a memória relutando em ser apagada. Esse excesso de recursos de Julie para se desligar da realidade justifica as raras cenas em que a personagem aparece chorando - o que seria mais normal, diante da tragédia que sofreu. São as ferramentas que ela usa para tentar alcançar a idealizada liberdade: libertar-se do passado.
No ano de lançamento de A liberdade é Azul, 1993, também entrava em cartaz Jurassic Park, de Spielberg. Aproveitando a contemporaneidade das obras, Binoche declara "eu preferia ter feito um dinossauro a ter feito uma dessas pessoas que não se definem". Essas pessoas que não se definem, pois brigam com seus demônios internos, muitas vezes externalizados em cores nos filmes, estão nas três partes da trilogia.
A cor azul no filme, portanto, está sempre ligada ao passado de Julie e/ou suas tentativas de esquecê-lo. E o passado no filme acontece nos minutos iniciais, que abordam a primeira sequência - a do acidente. Nesse momento a fotografia é predominantemente azul. A música inacabada do marido de Julie é o elemento que mais reluta ao esquecimento. Além do uso do azul para evocar a presença do passado, quando Julie é questionada sobre algo mais pesado sobre sua vida com a família, a tela fica em blackout, com o plano próximo enquadrando o rosto de Julie. No momento em que a tela está completamente negra, toca o trecho da obra que Julie decorou. Quando voltamos do blackout, Julie responde à pergunta. Só quando Julie resolve concluir a obra é que temos acesso a outras partes desta.
Valorizando aspectos mínimos da vida e com imagens puras, sem abrir mão de cinema sofisticado, principalmente na fotografia, Kieslowski faz metáfora verdadeira da vida. A Liberdade é Azul é obra completa, bem como os outros filmes. A Trilogia das Cores tem seus significados ressaltados e reiterados quando em conjunto, mas os filmes separados funcionam perfeitamente.
Abaixo pode-se ouvir a música completa que sobreviveu na memória de Julie. Para quem tem medo de spoiler, dê play e apenas escute, pois é a sequência final do filme.


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