sábado, 31 de julho de 2010

Como água para chocolate




O que é um bom filme? Aquele que nos agrada? Aquele que não enrijece, não representando um momento de estagnação para a linguagem cinematográfica? O mais puramente é Cinema (com C maiúsculo)? Ou que seja, à sua maneira, arte? Nos últimos anos a crítica tem sido mais flexível ao analisar obras que sejam híbridas. Já dizia-se nos tempos de Nouvelle Vague que as outras artes podem ser usadas no cinema e isso não o minimizaria. Em Como água para chocolate (Idem, México, 1993 - 1 h 45 min), há a relação forte com a literatura, provavelmente por se prender ao que há de melhor no romance o qual foi baseado. Mas aqui não é um exemplo de como o casamento "cinema + outra arte" deu certo, contrário ao caso de Sin City, por exemplo, que traz elementos de Hq.
Tita (Lumi Cabazos) nasce na cozinha quando sua mãe cortava cebolas. Seu pai morre pouco depois de seu nascimento e o lar se torna predominantemente feminino, visto que antes de Tita também só nascera mulheres. Por ser a caçula, Tita se ve condenada à tradição local: a última filha não deve se casar, pois cuidará da mãe até sua morte. Essa realidade se torna um inferno quando a jovem se apaixona por Pedro (Pedro Muzquiz). Pela impossibilidade de ficar com Tita, Pedro se casa com a irmã dela para poder ficar próximo da mulher que realmente ama.
Por Tita ter passado desde a infancia a maior parte do tempo reclusa na cozinha, desenvolve dotes culinários. E é pela culinária que o filme tenta expor o que os personagens ocultam. Em um momento que poderia ser brilhante, os personagens, num almoço, fazem uma orgia (metafórica) apenas degustando dos excelente pratos de Tita. A cena acaba não funcionando bem pois é um recorte do livro. O que eles pegaram no romance não recebeu o devido tratamento para o cinema. É tudo marcado pelas palavras da voz em off, tendo as imagens e som seu valor desprezado. É certo que as palavras são muito bonitas, vem de um texto muito bem escrito e poético. A questão é que o filme não é um híbrido equilibrado na medida em que praticamente só traz os recursos que o livro já trazia e menospreza uma segunda criação. A boa adaptação pressupõe a criação de uma outra obra e não uma versão (inferior) da original.
Há deslizes maiores que ainda acontecem. A história aborda a vida inteira de Tita, do nascimento à morte. Não se consegue cumprir a missão de ter uma narrativa regular, o que é agravado já que a história é linear - uma missão não tão difícil. Quando menos esperamos, somos surpreendidos com personagens que já haviam morrido voltando em sua versão de fantasma para acabar seu papel na narrativa que esquecerma de cumprir enquanto estavam vivos. Elementos elucidados no início são trazidos em proporções maiores para simular que o roteiro é coeso, mas o estrago já estava feito. Elementos surreais e sobrenaturais estavam no livro compondo o Realismo Fantástico. Em tal gênero literário, elementos bizarros são tratados com naturalismo, fazendo com que o aceitemos. No filme temos a impressão de que, depois de usar todas as armas que podiam para salvá-lo, apelaram para "soluções metafísicas". Não fica de bom tom. A obra parece toda mal remendada.
Os problemas vem de um processo de adaptação ruim e os méritos são os que já estavam no livro. É muito peculiar elevar Tita como artista que transfere para seus pratos o turbilhão de sentimentos que passa. Ao ingerirem os pratos de Tita, todos reagem. Tita faz o bolo de casamento de Pedro com sua irmã e acaba derramando lágrimas na massa. Todos os convidados acabam vomitando. Por fim, fica a dica: leiam o livro - é muito bom.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

O fotógrafo do underground

É debate ferrenho tanto no campo da arte quanto da publicidade/design a legitimidade (ou falta dela) da p/d enquanto arte. Por convenção, atualmente mantém-se os produtos advindos do design e publicidade em uma categoria bem distinta daquilo que seria expressão artística. São classificados apenas como produtos industriais. Por ora, temos essa concepção de publicidade e design. A fotografia já teve seus dias de luta frente aos intelectuais para se assumir como arte. Saiu vencedora, mostrando-se um meio artístico original. Mas onde se encaixaria aquela fotografia feita para os produtos de publicidade e design? Também por convenção, hoje, aquelas fotografias feitas para editoriais de revista, fotografia de moda, capas de cd, etc. são recursos do produto de p/d. Não pretendo me aprofundar em tal debate, pois dele já há quilos de referências e intelectuais que deram suas vidas buscando as respostas apropriadas. O que pretendo trazer aqui não é até onde aquele produto voltado para a indústria é artístico ou não, mas sim avaliar aqueles que estão por trás desses produtos. Seriam eles artistas? Ao usarem cores, formas e luz para evocar sentimentos e inconscientemente colocarem muito de sua visão de mundo no que fazem, não estariam eles sendo artistas?
É papel do artista fazer uma leitura do mundo a seu público. É dar abrigo emocional a ele. Steven Klein (1962 – atualmente), fotógrafo norte-americano, é incontestavelmente um leitor e construtor de seu tempo, mesmo servindo quase sempre à publicidade. Com as particularidades de trabalhar o tema e conceito das campanhas e ensaios fotográficos que se envolve, Klein é mais um daqueles sujeitos que podem nos dizer o que somos, o que vivemos e para onde possivelmente vamos. Quando toda a riqueza estética e conteudista de um anúncio da Dolce&Gabbana faz nosso olhar mudar de direção, os mais conservadores dirão que Klein foi bem sucedido no seu único objetivo que era vender o produto. Mas o universo que ele fotografa é muito mais que a compra da cueca que está na moda. Outro fator essencial que me fez escolher um fotógrafo com Klein foi tentar humanizar a relação que estabelecemos com fotografias voltadas para publicidade e design. Por esse tipo de fotografia muitas vezes se submeter a um objetivo maior que sua arte em si, que é a venda do produto, acabam por ter aspectos generalizantes, que fazem o autor desaparecer por trás do visor da câmera. Olhamos a fotografia como apenas um anexo da propaganda, assim como temos o mesmo olhar para a tipografia e o layout. É como se entendêssemos aquilo apenas como resultado de um trabalho de computador. É bem verdade que tais fotografias, a maioria, é bastante genérica e “desumana”. É uma linha estilística que se desenvolveu na história da publicidade. Tal tendência não é seguida por todos. Um deles é Steven Klein.

O Universo de Steven Klein

Falar que o fotógrafo trabalha como moda e celebridades é fazer muitos entenderem sua temática como reduzida. Isso acontece porque pegando uma revista com bastante publicidade de moda, por exemplo, vamos encontrar dos mais diversos anúncios. Em todos eles encontraremos boa parte de elementos em comum e uma mensagem bem vazia. A maioria vai optar pela estética visual forte, mas o universo acaba por ser pobre. Klein, apesar de também aderir a alguns clichês, trará quadros com universo rico. Suas peças estão aí para a reflexão e não para a alienação. Ele é uma das provas que a cultura de massa não é apenas um instrumento para “emburrecer” as pessoas. 
Com uma tendência para polemizar, Steven usa elementos que evocam violência, sexo, sexualidade (pois não tem pudor para trazer à vista o homossexualismo), solidão e loucura. Como a sensação geral do século XXI, sua obra é um conglomerado de emoções e sensações.
A grande tendência da comunicação é a convergências dos meios. Steven Klein não está atrasado quanto a isso. Também constrói carreira como diretor de videoclipe, motion design e video arte. Em quase todas as turnês da performática cantora Madonna, vídeos feitos por Steven Klein que são exibidos no telão. Uma exercício de “pictorizar” a música.
A parceria Klein/Madonna já é duradora. Muitos dos projetos pessoais do fotógrafo tem a participação da estrela pop. O casamento é perfeito. Um é equivalente do outro, cada um em sua área. Isso é nítido na intensidade que ambos se expressam e mais claro ainda se compararmos as temáticas mais comuns. Juntos já fizeram diversos vídeo-arte e ensaios. Recentemente foi publicado na revista Vogue a última parceria. Trata-se de um ensaio em que Madonna encarna uma dona de casa da década de 50. Buscando maior proximidade com a realidade visual da época, Klein fotografa em preto e branco. Ainda para revistas, Klein meio que se veste de Cartier Bresson e revela a alma de Madonna em fotos espontâneas e despojadas. A cantora não usa seus figurinos deslumbrantes. Um trabalho de fotojornalismo. Há quem o apelide de “fotógrafo da Madonna”, mas quem o chama assim corre o risco de estar reduzindo um artista a outro.
Por atender diversos clientes, cada um com um produto diferente a vender, Klein é versátil quanto cada um. Consegue assumir a identidade visual apropriada para cada campanha sem ter que abandonar suas marcas. O padrão visual é bastante versátil. Mas também é percebida uma tendência do autor na predileção de algo mais vintage e retrô. Mas o que essencialmente o caracteriza visualmente é o excesso. Ou muitas cores, nenhuma, granulação anormal, muita luz, contrastes diversos acentuados e sequência de leitura complexa para quem executa e perfeita para quem lê a imagem. Consegue estabelecer fortes relações com os figurinos e corpos dos modelos que os vestem. Normalmente temos em quadro diversos elementos, mas sua diagramação é coesa e não confunde o leitor. Os projetos pessoais de Klein são livremente artísticos. O descompromisso com a venda de produtos é elemento essencial que faz seus dois lados (o comercial e não comercial) terem divergências. Quando serve à publicidade, por mais absurdo seja a maneira que Klein aborda o mundo, ele não pode abrir mão de imagens claras, coesas e de impacto visual positivo. Suas fotos tem que ser bonitas dentro daquilo que se convenciona beleza. Nos seus projetos pessoais ele se vê livre para experimentação. Aqui ainda vemos a tendência vintage e retrô. Explora bastante a saturação e granulação da imagem. Tudo isso sem deixar de trazer seu posicionamento quanto a sexo, violência e etc. Klein é poluidamente, comercialmente e industrialmente um artista puro.

A construção da história pelo cinema

História, imagem, movimento

Muito fácil estabelecer métodos e esperar que eles sejam eternos. Os meios mudam e temos que nos adaptar a eles. É essencial para a evolução. A história teve longa vida enquanto campo de conhecimento cuja escrita era atividade principal. Mas as palavras não são a história. Elas foram a solução encontrada pelos historiadores pare reproduzir sua produção, não são o “conteúdo em si”, mas apenas um meio. Certamente há outros caminhos que possibilitem o registro da história.
A história também pode ser contada por imagens e sons. Essa é a abordagem que trago para a discussão. Observando a história da História, é perceptível a flexibilização que sofreu. A abordagem é cada vez mais ampla e várias regras não resistiram ao tempo. O estruturalismo cai por terra enquanto único viés possível. Observavam os acontecimentos de longe, com recortes de tempo significativamente largos. Algo que não precisava de ciência própria para seu estudo. Era preciso ser mais específica. Surge então a micro-história e a biografia comum também passa a ser objeto de estudo. Pequenos grupos de pessoas, um indivíduo e suas atividades, tudo contribui para os acontecimentos históricos. A micro-história se aproxima bastante da estrutura da literatura, mas se mantém particular enquanto exige fontes.
A ideia de verdade passa a ser também bastante subjetiva. Ao perceber que uma série de questões levam o indivíduo a fazer um recorte necessariamente pessoal acerca de vários fatores, não é mais a verdade absoluta o objetivo buscado por historiadores. O historiador constrói a história. Ele tem também uma visão de mundo a oferecer. Seguindo influências, o documento ser verdadeiro não o torna melhor que um falso. Saber o porque da falsificação do documento também é história.
Se um cineasta se engaja na construção de um recorte do tempo, imerge na leitura de documentos e desenvolve sua obra, um filme de abordagem histórica, não estaria ele construindo história e, consequentemente, sendo um historiador? A maioria dos filmes de abordagem histórica, principalmente hollywoodianos, tem a estrutura de micro-história adaptada para imagens. Se já não é o mais importante a fidelidade (pois essa é subjetiva) e a narrativa já foi aceita na micro-história, uma obra com densidade naquele universo temporal que retrata não poderia ser considerado fruto da História?
Além de poder trazer aquilo que já trazia o texto, que é o relato dos eventos, o cinema pode proporcionar a experiência. Tal recurso é arma que evidencia as limitações de palavras cruas. Mesmo um público intelectualmente preparado para ver um filme, sabendo que todos os fatos ali são ficcionalizados, ao imergirem na obra, ao chorarem com os personagens, eles acreditam naquilo e esse passa a ser seu referencial, ao menos emotivo, para quando estudarem a abordagem trazida no filme.
Acima de tudo, o que dever ser reconhecido é o potencial da linguagem cinematográfica enquanto construtora da história tão eficiente quanto a escrita. Há filmes de abordagem histórica bem realizada e outros não, o mesmo vale para livros e artigos.
O objeto aqui analisado será Outubro, filme do cineasta russo Sergei Eiseinstein. É uma leitura da Revolução Russa de 1917. Eiseinstein é reconhecido por suas imensas contribuições para a linguagem cinematográfica. Ele fala quase tudo apenas com as imagens. É essa pureza imagética que tentarei aproximar como tão poderosa quanto o texto histórico.


Outubro – os dez dias que abalaram o mundo

Einseinstein e a Vanguarda Russa
Eiseinstein e seu cabelo bonito
“A atração tal como a concebemos é todo o fato mostrado, conhecido e verificado, concebido como uma pressão produzindo um efeito determinado sobre a atenção e a emotividade do espectador e combinado a outros fatos possuindo a propriedade de condensar a sua emoção em tal ou tal direção ditada pelos objetivos do espetáculo. Deste ponto de vista, o filme não pode contentar-se simplesmente em apresentar, em mostrar os acontecimentos, ele é também uma seleção tendenciosa desses acontecimentos, a sua confrontação, libertos das tarefas extremamente ligadas ao tema, e realizando, em conformidade com o objeto ideológico do conjunto, um trabalho adequado ao público”.
(Eiseinstein)
Eiseinstein inicialmente estuda engenharia e mais tarde conhece a arte, primeiramente com ilustração, depois o teatro e finalmente o cinema. Foi assistente de Kuleshov. Em 1918, então com 20 anos, Serguei Eiseinstein alista-se no Exército Vermelho e participa da Guerra Civil. Como isso percebemos seu posicionamento político.
O Suprematismo Russo e o traço que pudesse chegar a todos
A arte sempre foi valorizada desde os primeiras vitórias obtidas pelos bolcheviques na Revolução. Criou-se o Prolekult (“Proletarskaia Kultura”- cultura proletária) onde se fomentou a importância da arte ideologicamente engajada na formação de uma unidade nacional. Ela Foi considerada o mais importante instrumento das forças de classe. É na disseminação de tais pensamentos que surge nas artes plásticas o Suprematismo Russo e, no cinema, a Vanguarda Russa. Alem de Eiseinstein, foram importantes cineastas soviéticos Pudovkin e Vertov.

Sobre o uso da arte engajada, Lênin declara:
“Gosto mais da criação de duas ou três escolas primárias em aldeias perdidas que da mais bela obra de qualquer exposição. A elevação do nível cultural das massas criará uma base sã e sólida às forças poderosas, inesgotáveis, que assegurarão o desenvolvimento da arte, da ciência e da técnica. O desejo de criar cultura e de a propagar é, aqui, extremamente forte. Mas é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo, há quem se apaixone demasiado pela experimentação; ao lado de coisas sérias despendem-se muitos esforços e meios com futilidades”.

De tais palavras percebemos que o objetivo não voltava-se apenas para a produção de ferramentas de domínio da massa. Apostavam na intelectualização artística de todos, assim poderiam consumir uma arte de vanguarda ao mesmo tempo que se fortificava a unidade nacional.

Outubro – entre a propaganda e a estética


As palavras de Eiseinstein reproduzidas no início da página anterior se referem ao inovador método de montagem que criou: a montagem dialética ou montagem intelectual.Ao isolarmos as palavras socialismo e dialética podemos pensar em possíveis inferências com a dialética marxista? Sim. Arte e política se encontrando novamente. A ideia era que a soma de um plano com outro gera uma impressão que não era resultado da soma, mas algo diferente. É dizer que A + B não é igual a AB. Tese e antítese ao se confrontarem geram uma síntese, que é algo novo e maior que a mera soma das duas partes.
Importante destacar na citação de Eiseinstein “o filme não pode contentar-se simplesmente em apresentar, em mostrar os acontecimentos, ele é também uma seleção tendenciosa desses acontecimentos”. Qualquer filme ou obra feita por um humano terá um posicionamento definido. Mas ao falar isso, Eiseinstein nos explica o cinema de propaganda.
Eiseinstein foi um grande intelectual, sendo um dos mais importantes teóricos do cinema. Sua obra acadêmica é tão importante quanto sua filmografia. Ao fazer Outubro e ser acusado por muitos de não explorar densamente a realidade dos fatos é subestimar tudo o que ele já havia feito academicamente, alem de sua obra cinematográfica. Ele já havia provado que a pesquisa intensa fazia parte de sua rotina. Procede à realização de Outubro o desenterrar de muitos documentos, análise de livros e artigos de diversos jornais, alem de visitas a fábricas e entrevistas com ativistas do Partido que vivenciaram o ocorrido.
Para reforçar a repulsa de muitos “intelectuais” à importância de Outubro na construção da memória sobre a Revolução, Eiseinstein é extremamente estético, metafórico. Seus recursos visuais são antinaturalistas. Momentos marcantes são a destruição da estátua do czar representando a tomada do poder, a cena do pavão contrapondo-se à cena de líderes entrando numa sala de reuniões, etc. Seria fácil dizer que usa a forma em detrimento do conteúdo. Mas sua montagem dialética, que não é apenas estética, está propondo a construção de conteúdo.
É certo que Outubro diverge de forma relativa daqueles fatos que se convencionaram como os verdadeiros sobre a Revolução. Mas sua importância está mais no estudo do imaginário que um partido quis construir de si mesmo para seu povo, exigindo o ocultamento de um ou outro evento.
Outubro foi um dos dez filmes destinados à comemoração de dez anos da Revolução de 1917. O roteiro inicial sofreu forte censura, para desgosto de Eiseinstein, principalmente nas partes do filme onde aparecia Trotski. Em 1927 Trotski é expulso do Partido. O destaque deveria se voltar para a exaltação de Stalin. Os feitos do partido de Lênin foram minimizados. Eiseinstein exalta heróis aqueles que lhe foram solicitados, cria mitos. A Revolução vira um grande drama, com personagens que se destacam pouco na multidão, apenas de maneira pontual, como numa narrativa histórica escrita. O espírito entre os proletários é de irmandade utópica. Outubro é um verdadeiro épico. Isso para desgosto de alguns historiadores. Mais que promover a integração das massas à arte, a integravam à história – mesmo que de maneira declaradamente manipulada.

“Uma obra como outubro revela claramente que está construindo, mais que refletindo, uma visão específica do passado”.
(ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes Os filmes na história)

O cineasta historiador

Em uma crise epstemológica a história alberga a biografia comum e cria sua micro-história. Pode ser visto como a maneira que encontrou para sobreviver, mas isso nada mais é que uma adaptação. Com o surgimento da TV, imaginou-se o fim da rádio e do cinema. Isso não aconteceu. Cada meio tem sua função e permanece vivo enquanto for demandado. As mudanças são naturais. Estagnação pressupõe falta de vida. A historia e o cinema estão vivos e em pleno processo de adaptação, construção.

A historia acaba recusando o cinema mais pelo que já foi feito do que por seu potencial midiático em si. Seria muito ignorante não aceitar o que as técnicas e linguagem que o cinema tem a oferecer para a construção da narrativa histórica. Mas também não devemos ser duros quando algumas obras usam o pretexto de contexto histórico apenas como vaidade (que não é o caso de Outubro). É de pleno direito da ficção usar elementos do passado como quiser, desde que se assuma como ficção e, a princípio, não deve ser criticada por isso. Em que pese que a leitura imagética e sonora, por nos proporcionar a vivencia, seja muito mais crível que uma narrativa exclusivamente escrita.
“Se nenhum cineasta quis reivindicar o titulo de historiador, talvez seja porque eles, tanto quanto o público e os estudiosos, aceitaram por aculturação as noções tradicionais de historia como discurso escrito. Resenhas de filmes na imprensa sempre indicam aos diretores os fortes limites traçados pela cultura entre o que pode ser chamado de história ‘propriamente dita’ e o filme dramático”.
(ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes Os filmes na história)

Talvez não devamos mais brigar pelo que é campo de estudo de um ou outro. A convergência, em alguns aspectos, é inevitável e não necessariamente ruim. A mudança sempre amedronta, mas a adaptação está aí para manter muita coisa viva.



Texto realizado para projeto final da disciplina 
Introdução aos Estudos Históricos do 
Instituto de História da UnB (com adaptações)


Referências bibliográficas e fílmicas

ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes os filmes na história, São Paulo, Paz e Terra, 2010
http://presentedisagradavel.blogspot.com/2007/08/vanguarda-russa.html
http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_Russa_de_1917
http://pt.wikipedia.org/wiki/Serguei_Eisenstein
http://www.klepsidra.net/klepsidra9/eisenstein.html
EISEINSTEIN, Sergei. Oktiabr, Rússia, 1927

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Solaris




O cinema chega onde quer quando seu universo não foi criado, mas descoberto. A linguagem predominante surge como natural, como demanda de nossas angústias. Já está tudo dentro de nós. Se no cinema norte-americano predomina a estrutura narrativa de três atos, certamente contaram mais que fatores comerciais para essa tendência. Prova disso é observar nas outras culturas que os caminhos possíveis são vários. A decisão diante das possibilidades é resposta de nosso inconsciente. Quando os diretores de uma determinada época fazem certas escolhas estéticas e intelectuais, o fazem não por achismo, mas porque precisam.
Solaris (Solyaris, União Soviética, 1972 - 2 h 45 min), enquanto obra advinda de um país de particularidades culturais consideráveis, é um exemplo do que suscito acima. A reflexão a partir desse referencial se torna mais clara quando observamos o terceiro longa de Andrei Tarkovsky (Stalker) como "resposta soviética a 2001 - uma odisséia no espaço (Kubrick)", nas palavras de muitos que acompanharam a Guerra Fria. Os dois filmes, incontestáveis obras-primas, de alguma forma trazem as mesmas reflexões e acrescentam para o cinema soluções estéticas também semelhantes. O que as difere, primeiramente, é a o traço forte de cada um dos diretores. Depois disso, acredito que as relações de tempo, homem/natureza, morte, etc, distoam bastante já pela cultura das nações de onde foram feitos. Isso faz Solaris não ser por aqui (América) uma obra comercial. É produto para cinéfilos ou outros curiosos. Na Rússia, seus códigos abordam público maior. O mesmo deve acontecer com 2001, é claro que em grau inferior, justo que o imperialismo cultural norte-americano impôs a todos os cantos do mundo sua maneira de ler o mundo (e por que não de ler um filme).
O psiquiatra Kris Kelvin (Donatas Banionis) é chamado para visitar a estação espacial Solaris para julgar se há condições de continuidade da missão em um planeta misterioso. Na primeira parte do filme, conhecemos Kris e o peso de seu passado. Não necessariamente um peso negato, mas algo relativo ao que já viveu, o quanto viveu. Sua casa permite, graças à direção de arte, ver que ali já passaram outras pessoas, que tempos melhores aconteceram (ou não). Essencialmente há muitas lembranças. Ao chegar em Solaris, Kris logo é surpreendido com o suicídio de dois tripulantes e o nível de insanidade que marca os que ainda estão vivos. O tempo é uma rede que não deixa as coisas passarem. O que acontece continua nos ambientes e nos personagens. Está tudo em eterna construção. Os personagens do final já são outros. A transformação é um tanto pessimista. Todos tendem para a melancolia e dessa para a loucura.
Kris, como novato na tripulação, é o mais consciente. Isso é ameaçado quando surge um andróide/aluninação de sua falecida esposa Hari (Natalya Bondarchuk). Tudo que viveram tentam repetir, ao mesmo tempo. É intenso demais para estar com a cabeça no lugar. Hari é atormentada pela insegurança de sua existência. Não sabe exatamente quem é e onde está. Suas emoções são humanas e a guiam. Hari renasce diversas vezes. Várias tentativas de fazer voltar o passado. "Não consigo me acostumar a todas essas ressurreições", palavras de Kris.
Poucos personagens, filme longo, grandes cenários. Igredientes para planos gerais, momentos de silêncio... Tudo é pausado, devagar, para exaltar a melancolia, a solidão. A natureza é um personagem. Interage com os humanos. Em Solaris, longe da natureza, o ventilador balança o papel e gera barulho semelhante ao de folhas no vento. A letargia de Tarkovsky leva muitos a dormir, achando intediante.
Predominam os planos gerais donde enquadrados um único personagem e árvores retorcidas e planos gerais com um personagem no centro e as linhas de perspectiva convergindo para o ponto de fuga (onde se localiza o personagem). A perspectiva é clássica, a mesma usada por Da Vinci em A santa ceia. O porque de Tarkovsky fazer as linhas se encontrarem no elemento humano do quadro? Provavelmente mais uma maneira de colocar as vivências do indivíduo como eternamentes inerentes a ele.
É grande mérito de Solaris o híbrido cyberpunk/romance. São dois universos que merecem meticulosidade ao serem abordados, do contrário, serão vazios. Tarkovsky consegue densidade nas duas temáticas, algo que mais tarde Ridley Scott faz em Blade Runner. "Não se deve converter em amor um problema científico e vice-versa" (com adaptações. Isso é dito em algum momento... não me lembro quando agora). A certeza que temos ao ver Solaris é que aquelas pessoas vão morrer. Outros ficarão. Dos que morrem primeiro fica tudo, menos o corpo. Aos que restam, cabe carregar o que foi deixado.

sábado, 17 de julho de 2010

Rashomon




Akira Kurosawa (Ran) é bastante lembrado por trazer o cinema oriental para o resto do mundo. Tal empreitada é estreada com Rashomon (Rashomon, Japão, 1950 - 1 h 28 min), considerada uma de suas obras primas. Kurosawa faz o ocidente assistir filme japonês por um dos caminhos mais fáceis. Traz a linguagem a qual aquele público já estava acostumado (enquadramentos pré-prontos, estrutura de roteiro, etc). Mas ele consegue isso sem abrir mão de seu traço estilístico. Sua obra não deixa de ser bastante autoral.
Japão, Período Kamakura. Um lenhador (Takashi Shimura), um sacerdote (Minoru Chiaki) e um camponês (Kichijiro Ueda) procuram refúgio nas ruínas do Portão de Rashomon. Aguardam passar uma tempestade. O sacerdote relata um julgamento que testemunhou envolvendo o estupro de Masako (Machiko Kyô) e o assassinato do marido dela, Takehiro (Masayuki Mori). O bandido para os dois crimes é Tajomaru (Toshirô Mifune). Nas palavras do sacerdote, somos transportados para o julgamento em flashback. Cada um dos envolvidos conta sua versão da história. Na versão de cada um, também somos levados por flashback. Flashback dentro de flashback. Tal recurso temporal tem bastante credibilidade para o espectador. Funciona como um olho que tudo vê e não como um olho subjetivo. À medida que um relato contradiz o outro, Kurosawa recontrói a ideia de flashback. Por fim, não acreditamos em nada que saia de um humano no filme. Todos, com seu ponto de vista, estão buscando o melhor resultado para si no julgamento.
As temáticas mais claras do filmes se centrarão entre até onde se corrompe o caráter humano e na estabilizaçao, ou falta dela, no triângulo amoroso que se forma entre os três personagens centrais, onde se desencadearão os crimes posteriormente postos a julgamento.
Kurosawa representa o triângulo amoroso poeticamente nos enquadramentos. Ora dois personagens estão no primeiro plano e outro, à mercê da decisão dos que estão em primeiro plano, em segundo. O geometrismo é bastante claro em alguns enquadramentos. A disposiçao dos personagens mais os cenários formam triângulos. O triângulo não vale apenas para os três protagonistas (o bandido, o samurai e a esposa do samurai), mas também para aqueles que aguardam o julgamento no limbo rashomon (camponês, sacerdote e lenhador).
Além dos enquadramentos em triângulo, também ganha destaque o bom uso da câmera no momento em que o bandido rouba um beijo de Masako. O diretor de fotografia Kazuo Miyagawa é muito bem sucedido nos contrastes e efeitos de luz que consegue pela luz do sol que atravessa as folhas das árvores no bosque onde se desencadeia toda a ação do triângulo amoroso. No ato do beijo, Masako é relutante, mantendo os olhos abertos. Ela olha para a copa das árvores. Sua aversão vai desaparecendo. Está gostando do beijo. Sua visão fica turva. Cede ao beijo.
As relações tríade do filme podem ser levadas ao campo da psicanálise. Os arquétimos de personagem, tanto dos três que estão em Rashomon quanto dos que estão no bosque lembram o esquema id, ego e superego. No bosque, por exemplo, o samurai seria o id - o mais inibido; a esposa o ego - relutante quanto às suas vontades desesperadas e o superego para o bandido - que não se esconde. Tal comparaçao também foi aplicada de forma semelhante ao livro Morro dos ventos uivantes, de Emily Bronte.
A música é bastante hollywoodiana. As vezes tem os defeitos de hollywood, principalmente no início do filme. Nessa parte ela pontua toda a ação. Uma relação com as imagens de pura redundância. Mas há também sequências que são completamente coesas com a música. Amarradas por ela.
Quando os personagens já não sabem onde estão e para que estão, levando o público junto para as mesmas dúvidas, é lançada uma explicação geral para o filme a que estiver acordado para captar: "a realidade é um faz de contas. O homem quer esquecer as coisas ruins".

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O anjo exterminador




O casal Leandro (José Baviera) e Lucía de Nobile (Lucy Gallardo) convidam seus amigos para um refinado jantar em sua mansão. Estranhamente, pouco a pouco os empregados vão deixando o local, onde deveriam estar trabalhando na festa que nem dá sinais de estar acabando. Todos estranham, mas as ações se limitam a comentários. Adentrando à madrugada, muitos dos convidados já se queixam passar da hora de terem ido. Os empregados já se foram todos, ficando apenas o mordomo com a difícil tarefa de se virar sozinho numa festa para mais de vinte pessoas. Ninguém arrisca ultrapassar a porta de saída. Com a inviabilidade de sairem durante a madrugada, todos são convidados a dormir na mansão. Os quartos são oferecidos, mas os convidados acabam por dormir naquele ambiente da festa, a sala. Todos estão confusos quanto ao porque das "escolhas". Os empregados não voltam para a mansão. Ninguém atravessa a porta. Os dias se passam e a situação fica precária. Falta água e comida. Com tamanha pressão, os personagens vão se revelando, mostrando seus piores lados, até então ocultos.
O Anjo Exterminador (El ángel exterminador, México, 1962 - 1 h 35 min) é um drama surreal extremamente realista. Não entenda realista como aquilo que é diretamente espelhado da nossa "realidade". O universo que bloqueia os personagens, assim como algumas situações são tipicamente surreais. O realismo está nas atuações verossímeis, nos diálogos e demais aspectos humanos. Há nessa obra tudo de mais bizarro que caracteriza a obra de Luis Buñuel (A bela da tarde). A diferença está no tratamento. Onde normalmente os elementos surreais eram imagéticos e explícitos, agora estão na situação, no desenrolar da ação. Não perdendo em nada a essência daquilo já feito para sua autra "maneira" de ser surreal.
Fazer que personagens não consigam sair de um ambiente é só o passaporte para o verdadeiro objetivo. Estão todos em "meio de cultura" se (des)conhecendo, se irritanto e vendo até que pondo há legitimidade, há verdade, nos relacionamentos que tinham até então. Casais se formam e outros se desfazem. Manias aparentemente comuns, como pentear os cabelos em um só sentido, são vistos como verdadeiramente provocantes para os personagens que estão saturados da "condição". O meio de cultura é a sala, mas quem seria o cientista que analisa as reações de suas bactérias ao adicionar substâncias?  Buñuel.
Além de inaugurar uma maneira de conduzir a trama diferente do que o diretor já tinha feito, há momentos de associação direta com outros trechos de sua obra. O pesadelo em que uma mão flutuante passeia pela sala enquanto quase todos dormem nos lembra imediatamente a obra de estreia de Buñuel com parceria de Salvador Dalí, Um cão andaluz. Além de inserção de símbolos de referência mitológica e bíblica, como é o caso das ovelhas que atravessam a sala, o urso que os amedronta e o retrato de anjo (exterminador) na porta do armário onde um casal se refugia para mais tarde morrer.
O anjo exterminador é denso. Nos assusta tanto quanto os mais pesados filmes de terror sem ter que recorrer a artifícios explícitos (como mais tarde fez Polanski em O bebê de rosemary). Está tudo num quadro ao mesmo tempo que não está. As inferências são infinitas. Alguns segundos de diálogos somados à atuação mais a luz planejada e o ângulo ideal são o suficiente para nos empedir de dormir.

domingo, 4 de julho de 2010

Braços cruzados, máquinas paradas




Tudo acontece num Brasil ainda virgem de mudanças. Nossa herança de conformismo faz as manifestações populares já tradicionais na Europa ecoarem por aqui séculos tardiamente. A inexperiência é percebida tanto no povo que reivindica melhores condições de trabalho como dos donos de meio de produção, que desconheciam e desacreditavam do potencial de manifestações populares vindas de indivíduos com, supostamente, bem menos bagagem intelectual. Talvez a fórmula para uma manifestação eficiente não esteja em uma biblioteca.
Braços cruzados, máquinas paradas (Idem, Brasil, 1979 - 1 h 16 min) essencialmente nos mostra a genialidade popular. A riqueza da espontaneidade, do nato. O sistema de trabalho vigente era dito como absolutamente alienante. Não se acreditava num espaço para que pessoas organizassem manifestações. Mas, acima das forças que regem o trabalho alienante, o corpo dos operários reage e busca espaço para buscar o que lhe é de direito. Em um depoimento emocionante, uma operária declara não haver tempo para ir ao banheiro. As máquinas não esperam. Não há tempo nem para o banheiro, mas a greve é iminente.
Focado na ideologia, no seu posicionamento nitidamente direcionado na defesa dos operários, o filme se centra na saturação dos depoimentos de forma verborrágica, não dando tanto espaço para a poesia, a reflexão. O que não necessariamente é um defeito. É uma escolha – a princípio, foi bem sucedida. O conceito do filme é muito bem estabelecido e funciona bem. Câmera enquadrando personagens em primeiro plano ora ou outra se movimenta para as laterais revelando o muro da fábrica, as faixas de greve, ou mesmo expressões marcantes dos funcionários explorados.
Narrativa clara e coesa, ora ou outra peca com a narração em off costurando aquilo que supostamente não se revela com imagens. Com atos muito bem definitos, acompanhamos o filme num primeiro momento que antecede a greve, quando os funcionários relatam as injúrias do ambiente de trabalho; um segundo ato mostra a articulação subversiva entre os funcionários e o terceiro se centra na greve em si e na articulação dos líderes sindicais com os representantes da fábrica.
Além da temática e do conteúdo muito valiosos do documentário, os personagens são o espelho de tudo que é debatido. Pessoas que trazem na voz seu sofrimento. Os tropeços no português não os tornam menos inteligentes. Pessoas com domínio daquilo que se poderia denominar “genialidade popular”. Uma esperteza, espontaneidade. Algo que os fez sobreviver ao sistema alienante.
Dentre as diversas reflexões possíveis e profundas que o filme pode trazer, na atual conjuntura (ao menos de Brasília), creio ser a procedência de greves a mais óbvia. É a greve ainda um “direito”, uma primeira alternativa para o proletariado? É a alternativa mais eficiente?
 
Copyright © Maurício Chades