sexta-feira, 23 de julho de 2010

Solaris




O cinema chega onde quer quando seu universo não foi criado, mas descoberto. A linguagem predominante surge como natural, como demanda de nossas angústias. Já está tudo dentro de nós. Se no cinema norte-americano predomina a estrutura narrativa de três atos, certamente contaram mais que fatores comerciais para essa tendência. Prova disso é observar nas outras culturas que os caminhos possíveis são vários. A decisão diante das possibilidades é resposta de nosso inconsciente. Quando os diretores de uma determinada época fazem certas escolhas estéticas e intelectuais, o fazem não por achismo, mas porque precisam.
Solaris (Solyaris, União Soviética, 1972 - 2 h 45 min), enquanto obra advinda de um país de particularidades culturais consideráveis, é um exemplo do que suscito acima. A reflexão a partir desse referencial se torna mais clara quando observamos o terceiro longa de Andrei Tarkovsky (Stalker) como "resposta soviética a 2001 - uma odisséia no espaço (Kubrick)", nas palavras de muitos que acompanharam a Guerra Fria. Os dois filmes, incontestáveis obras-primas, de alguma forma trazem as mesmas reflexões e acrescentam para o cinema soluções estéticas também semelhantes. O que as difere, primeiramente, é a o traço forte de cada um dos diretores. Depois disso, acredito que as relações de tempo, homem/natureza, morte, etc, distoam bastante já pela cultura das nações de onde foram feitos. Isso faz Solaris não ser por aqui (América) uma obra comercial. É produto para cinéfilos ou outros curiosos. Na Rússia, seus códigos abordam público maior. O mesmo deve acontecer com 2001, é claro que em grau inferior, justo que o imperialismo cultural norte-americano impôs a todos os cantos do mundo sua maneira de ler o mundo (e por que não de ler um filme).
O psiquiatra Kris Kelvin (Donatas Banionis) é chamado para visitar a estação espacial Solaris para julgar se há condições de continuidade da missão em um planeta misterioso. Na primeira parte do filme, conhecemos Kris e o peso de seu passado. Não necessariamente um peso negato, mas algo relativo ao que já viveu, o quanto viveu. Sua casa permite, graças à direção de arte, ver que ali já passaram outras pessoas, que tempos melhores aconteceram (ou não). Essencialmente há muitas lembranças. Ao chegar em Solaris, Kris logo é surpreendido com o suicídio de dois tripulantes e o nível de insanidade que marca os que ainda estão vivos. O tempo é uma rede que não deixa as coisas passarem. O que acontece continua nos ambientes e nos personagens. Está tudo em eterna construção. Os personagens do final já são outros. A transformação é um tanto pessimista. Todos tendem para a melancolia e dessa para a loucura.
Kris, como novato na tripulação, é o mais consciente. Isso é ameaçado quando surge um andróide/aluninação de sua falecida esposa Hari (Natalya Bondarchuk). Tudo que viveram tentam repetir, ao mesmo tempo. É intenso demais para estar com a cabeça no lugar. Hari é atormentada pela insegurança de sua existência. Não sabe exatamente quem é e onde está. Suas emoções são humanas e a guiam. Hari renasce diversas vezes. Várias tentativas de fazer voltar o passado. "Não consigo me acostumar a todas essas ressurreições", palavras de Kris.
Poucos personagens, filme longo, grandes cenários. Igredientes para planos gerais, momentos de silêncio... Tudo é pausado, devagar, para exaltar a melancolia, a solidão. A natureza é um personagem. Interage com os humanos. Em Solaris, longe da natureza, o ventilador balança o papel e gera barulho semelhante ao de folhas no vento. A letargia de Tarkovsky leva muitos a dormir, achando intediante.
Predominam os planos gerais donde enquadrados um único personagem e árvores retorcidas e planos gerais com um personagem no centro e as linhas de perspectiva convergindo para o ponto de fuga (onde se localiza o personagem). A perspectiva é clássica, a mesma usada por Da Vinci em A santa ceia. O porque de Tarkovsky fazer as linhas se encontrarem no elemento humano do quadro? Provavelmente mais uma maneira de colocar as vivências do indivíduo como eternamentes inerentes a ele.
É grande mérito de Solaris o híbrido cyberpunk/romance. São dois universos que merecem meticulosidade ao serem abordados, do contrário, serão vazios. Tarkovsky consegue densidade nas duas temáticas, algo que mais tarde Ridley Scott faz em Blade Runner. "Não se deve converter em amor um problema científico e vice-versa" (com adaptações. Isso é dito em algum momento... não me lembro quando agora). A certeza que temos ao ver Solaris é que aquelas pessoas vão morrer. Outros ficarão. Dos que morrem primeiro fica tudo, menos o corpo. Aos que restam, cabe carregar o que foi deixado.

2 comentários:

  1. fiquei pensando sobre a usa teoria do solaris ser mais digerível aos russos.
    acho que o solaris interessa em geral aos cinéfilos. não acho que toca os russos em particular.
    apesar de que todos falam que existe ali um ambiente de melancolia - flagelo de tantas guerras.
    É muito difícil entender países que passaram por guerras. É outra lógica.
    Mas não sei. Acho que nem o solaris entendeu.
    Arte é arte e arte costuma ser pra poucos.

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  2. Eu deveria ser do público que acharia chato o filme, de fato, os primeiros minutos são cansativos, não entendi até agora aquele plano-seqüência no japão.
    Quando o filme passou pra Solaris, tocou meu interesse, o que só foi crescendo até o final do filme, junto com a minha melancolia.
    Não sei se vem da guerra essa angústia toda do Tarkovsky, essa exploração do sofrimento humano, mas de fato não é algo exclusivo aos que passaram pelas guerras mesmo. Nossa capacidade de empatia possibilita sentir essa angústia densa que o diretor nos traz, ao menos foi assim que me senti. Desesperança foi a palavra que ficou piscando em minha mente no final do filme.
    Mas acho que essa sensação de angústia é válida em certa medida, porque nos faz refletir. É paradoxal, mas eu consigo sentir mais esperança diante da desesperança, justamente por essa crença que a gente tem de que as coisas vão melhorar. Solaris tocou nas minhas inseguranças e incertezas acerca do valor da vida e do próprio Homem, faz bem refletir sobre esse lado negro da gente, faz a gente descobrir pra onde levar a lanterna.

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